Esse post é um depoimento e ao mesmo tempo, um convite. Que tal usarmos esse espaço para relatar situações de vulnerabilidade que estejamos vivendo nessa pandemia? Como lidamos com elas? O que tem funcionado? O que tem nos enfiado ainda mais dentro do poço? E ainda: será que como cientistas do comportamento, temos lições para dar e também para tirar de tudo isso? É fato sabido a maioria de nós entrará em contato com o vírus, e esperamos que a maioria se livre da forma mais aguda, desenvolvendo a doença de forma leve ou mesmo -para utilizar do linguajar médico – de forma frusta, ou seja, sintomas tão amenos que o próprio doente não se atenta para a presença da doença, o que nos torna agentes de transmissão ainda mais potentes.
Como diminuir a aceleração positiva dessa cadeia infecciosa? Tomar o problema como “meu” pode ser um passo importante: é “meu” porque para eu estar bem e feliz, o outro também precisa estar; é “meu” quando empatizo com aquele cuja infecção apresenta um desfecho diferente do vivido pela primeira autora, seja pela idade, comorbidade, pobreza e ainda outras situações que o colocam em maior vulnerabilidade; é “meu” quando percebo que amar o outro é fazer o bem para ele, cuidar dele, e abdicar das minhas necessidades de sair e encontrar quem amo a fim de proteger a minha comunidade. Conte pra gente: o que te mantém na quarentena, dentro de casa? Quais as contingências motivadoras e mantenedoras? É o medo de adoecer? De perder as pessoas que ama? De ser vetor do vírus? É só por medo? Tem amor envolvido?
Quem nunca errou, que jogue a primeira pedra. Entre mortos e feridos, cá estamos: Brasil, abril de 2020. Classe média e alta tentando se manter em quarentena. Classe baixa lutando pra sobreviver. Nosso corpo se assusta quando ouvimos as palavras “ministro da saúde” e “presidente”.
Mas nem sempre foi assim. Quando o Covid-19 se manifestou em um país distante em dezembro de 2019, vermos profissionais de saúde pela televisão usando equipamentos de proteção gerava tamanha estranheza que muitos de nós achava graça, o que nos mantinha alheios aos dados científicos apontando chances reais do vírus circular mundialmente, tornando-se uma pandemia para a qual não nos preparamos de forma adequada.
Embora as ciências da saúde trabalhem pela promoção, prevenção e tratamento, no caso do Covid-19 ainda não existe a cura. Acompanhamos a história de outras nações e as estratégias que deram certo e outras nem tanto, mas parece que mesmo assim não tivemos o cuidado de nos prepararmos, por exemplo, para informar adequadamente a população da possibilidade do vírus chegar no país (antes de estarmos envolvidos emocionalmente), prevenir (pensando em compras de testes) e planejar o funcionamento do sistema de saúde, possibilitando ampliação prévia dos leitos para tentar um tratamento a todos. Nós quem? Nós, analistas do comportamento. Clínicos. Acadêmicos. Empresários. Somos todos treinados em técnicas científicas de modificação do comportamento, certo? Soubemos atuar em prol da saúde física e psicológica de nossos compatriotas?
Conforme apontado no texto da Maíra Silva (publicado no blog ABPMC Comunidade), nos distanciarmos física e emocionalmente de qualquer estímulo relacionado à pandemia é uma forma de reduzir sofrimento, de se esquivar experiencialmente (ou como a Izadora Perkorski apontou no texto sobre vício em jogar online, escapismo – leia aqui). E tudo bem. Faz parte do enfrentamento de crises usarmos de esquivas experienciais para aliviarmos a tensão e nos redirecionarmos para novas ações (Linehan, 1998).
O problema é quando fazemos só isso: fugimos tanto a ponto de fingir que o problema é só do outro. Até que ele passe a ser nosso e no caso da Maíra, meu.
Depoimento: Maíra Mello Silva
No dia oito de abril, descobri que já estava disponível no Brasil um exame de sangue capaz de detectar se a pessoa entrou em contato com o vírus e criou anticorpos. Meu resultado saiu em 20 dias … e deu positivo.
Apesar de estar sem os sintomas há aproximadamente 30 dias, a sensação de angústia e culpa por ter sido um agente de transmissão de algo que pode ser letal a uma parcela da população foi grande. Por alguns minutos tentei relembrar todos os lugares que frequentei e as pessoas que tive contato. Quanto mais pensava na cadeia de transmissão sendo “eu” o vetor, mais me agitava e sofria. Só parei de piorar a situação quando resolvi aceitar o ocorrido e voltar meus pensamentos para o que de fato poderia ser feito no momento presente, quando o meu papel de “mosquito” transmissor da dengue já havia encerrado. Falei com todas as pessoas que tive contato para avisá-las desta possibilidade e continuei em isolamento em casa. Respirei fundo, permaneci em silêncio. Agradeci ao meu corpo por ter reagido suavemente ao Covid-19 e, e ao acaso por todos ao meu redor estarem bem.
A minha história aconteceu em uma ordem temporal diferente da maioria das pessoas que relatam seu contato com o COVID-19. Não tive os sintomas mais característicos e impactantes. Apresentei dores nas costas, calafrios, pouca falta de ar que a princípio me parecia um processo alérgico, dores de cabeça, mas o que de fato me chamou a atenção foi a perda de olfato/paladar repentino dia 13 de março, que acreditei inicialmente ser algo de fundo neurológico. Demorei pra saber que esse também era sintoma do vírus.
Depoimento: Liane Dahás
Vivi o início do alastramento do vírus de outra forma: acompanhando de perto os dados de saúde internacionais, assim como os esforços da classe médica brasileira na preparação dos nossos hospitais públicos e privados para o recebimento do que seria o cenário da pandemia, escrevi com colaboradores um manifesto (leia aqui) pedindo que meus colegas cientistas do comportamento se ocupassem de forma mais ativa e responsável da questão. Pedia que olhássemos para nosso papel de cientistas e de profissionais da saúde na promoção de um ambiente menos hostil para nossos compatriotas. Pedi moderação, calma e ação.
E nessa semana tive minhas primeiras perdas: uma tia distante (idosa, já com a saúde bastante comprometida) faleceu por complicações no tratamento do coronavírus. No momento, duas tias próximas e muito queridas estão dividindo o apartamento em um hospital particular em Belém do Pará, tratando da mesma infecção. Perguntei como estavam: “Agora estou melhor. Até anteontem tava com uma tosse incessante, febril, e não completava a respiração”. Recebi pelo “zap”. E como estava entre quatro paredes, pude chorar, espernear, tremer, pedir colo. Mandei às favas a moderação, calma e ação que havia pedido? Não, pois o luto também pode ser feito com ação, calma e moderação. Processos de perda exigem justamente ações como essa, de aceitação do sofrimento. Toda vida tem seu valor, e cada um de nós terá sua parcela de sofrimento quando experimentarem vidas queridas sendo ceifadas pelo COVID-19.
Ansiosas pra a continuidade dos relatos,
Maíra Mello Silva e Liane Dahás